* Por André Arcângelo em 18 de julho de 2016
Dia desses, num acesso de raiva, destruí a tela do meu computador. Não, não foi um arranhão, não foi um canto pixelado: a tela inteira foi inutilizada, virou lixo.
Na hora não tive muita – ou a menor – noção do que acabara de fazer. Uma noite agitada por sonhos intranquilos e duas tentativas de voltar a dormir frustradas pela vizinhança prepararam o terreno para a irrupção violenta que ocorreu por volta das 11h30 de uma manhã de sábado – o dia em que, segundo o mito judaico-cristão, o Criador descansou. Não tive a mesma sorte d’Ele, e meu sagrado sétimo dia da semana começou com trombetas infernais estourando em meus ouvidos e despertando um monstro disforme e irascível do mais escuro de minhas entranhas. Mas acordar com mais barulho do que deveria ser tolerado a fim de se manter a sanidade mental de qualquer ser humano não é novidade nenhuma quando se vive em São Paulo – esse monstro, disforme e irascível.
Precisei de pelo menos 24 horas para começar a digerir o ocorrido a fim de extrair algum sentido que me permitisse redimir o meu ato descontrolado. O que fiz? Deixei o assunto descansar em banho-maria regado a vinho chileno, generosamente servido por amigos compadecidos com o estado lastimável no qual me encontrei ao longo de todo o dia. Ah, este santo remédio, o vinho… Quantas vezes não fez por minha pobre alma calejada mais do que muitos terapeutas… Compreendo os alcoólatras, assim como compreendo os nóias, os andarilhos maltrapilhos e todo miserável; não são mais do que o vivo reflexo da minha – da nossa – própria miséria projetada no mundo, aquela mesma que resiste sob a frágil camada de felicidade que narcisicamente produzimos para fotos no instagram.
O fato é que após muitas horas devidamente curtido no sacramento dionisíaco no dia seguinte minha alma já se encontrava mais apaziguada e uma clara imagem começou a emergir em minha consciência – do mesmíssimo lugar, suspeito, de onde 24h antes emergira minha hidra de sete cabeças. O tal do sentido começara por fim a dar as suas caras, reunindo os pedaços de mim mesmo estilhaçados junto com a tela do computador num todo harmônico com gosto de bálsamo.
Para os hindus Shiva é a um só tempo o deus da criação e da destruição; e no momento em que comecei a compreender a razão de minha erupção raivosa a imagem mítica do deus dançarino surgiu numa aura plena de sentido.
Muitas vezes é preciso destruir, atacando mesmo de forma violenta, aquilo que nos aprisiona em nosso lugar comum, a velha zona de conforto. Se não ouvimos e não acatamos o chamado da alma ela cria meios de se fazer ouvida pela forma mais direta, levando-nos a criar situações simétricas à nossa realidade interior em nossa realidade objetiva. Dessa forma, ocorrências aparentemente acidentais podem encerrar uma necessidade velada de implodirmos estruturas aprisionantes que não estão permitindo à alma seguir seu curso natural, expandindo-se criativamente para além dos limites do conhecido e do confortável. Contra o conforto, o confronto.
Uma ficha monstruosa caiu no momento em que compreendi o significado da minha explosão, liberando assim a energia criativa que estava tentando se comunicar com minha parte consciente e que, por insucesso em todas as tentativas anteriores, encontrou uma forma destrutiva de dar o recado.
Criação e destruição, diferentes aspectos de uma mesma potência – a escolha é sua.
Recado entendido e alma lavada, resolvi destruir mais uma rolha do chileno para celebrar a bênção de uma compreensão libertadora, agradecendo e brindando, a um só tempo, Shiva e Dionísio, sabendo que ambos – a criação e a loucura – emanam de um mesmo lugar dentro de mim e que podem, sim, sempre se reconciliar.
Imagens: kunkelstein via VisualHunt.com / CC BY-NC , andresAzp via Visual hunt / CC BY-NC-SA
André Arcângelo estudou Psicologia, mas sente-se mais à vontade contando histórias. Escritor e roteirista, vive e trabalha em São Paulo, e também lê Tarô nas horas vagas. Para saber mais sobre seu trabalho entre em contato com ele clicando aqui.
"Eu sou uma buscadora, dando meus passos no universo. Tentando entender, tentando digerir a vida. Eu não quero parar até encontrar de fato tudo o que venho buscando: dar todo o meu amor!"
– Autor desconhecido
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